Tuesday, December 12, 2006

Um traço nómada


Eis seres múltiplos que são planta e homem e nos convocam a uma realidade misteriosa. Cada um deles cala uma história e, ao mesmo tempo que se funde com outros seres igualmente múltiplos e plurais, não perde a sua identidade.
Se procurássemos a genealogia destes traços certamente iríamos parar às iluminuras, às figuras de pedra das catedrais medievas, ao povo das terras nunca vistas dos bestiários, ao homem-planta de quem falava Gil Vicente e aos desenhos dos xamãs. Mas aqui estes seres não estão ao serviço de uma mensagem, unicamente servem a surpresa. Todos estes seres polissémicos que, num circo de transformações à nossa frente, apontam não uma, mas várias direcções simultâneas. Convidam-nos ao soberano acaso que preside aos jogos e que acerta sempre em fazer as distribuições e os combinatórios inesperados. Estamos diante dos jogos de Proteu, jogos de metamorfose em que o jogador se transforma no próprio jogo.
Seres plurais, orientados para a sensualidade especial do lúdico, às vezes devoradores outras devorados, interceptam-se, cruzam-se, vivem para captar cor, para transmiti-la, para sugerir que a cor em si é energia. São, depois de uma passagem pelo povo invisível dos bosques, um pouco do povo invisível urbano, oriundo da surpreendida natureza urbana, ainda não domesticada pelo cimento, pelos parkings, pelas barreiras electrónicas do metro.
Ver o que ainda nunca se viu é o que compete ao artista, assim todos estes seres são únicos, exemplares, não repetem Arcanos e formam por isso um universo novo, evidentemente em expansão.
Alguns deles são caricatos, outros abertamente playful, e todos são clowns, de uma espécie que Nietzsche subscreveria - o clown epistemológico. Alguém que juntasse ao papel decisivo da carta do Joker e ao destino aberto a 360 graus da primeira carta do Tarot, o Louco, a sapiência do Eremita, neste caso o Eremita Urbano surpreendido pelas revelações do seu próprio circo.
Profundamente urbanos, mas não primordialmente humanos, estes seres remetem para a Dança das Energias Luminosas, de que nos falam em registos diversos os desenhos dos xamãs, as instruções dos Tantras. A criação para o criador é uma dança e um jogo (Lalita) mas aqui, nestas pinturas que respiram e transmitem energia mais do que aludir a ela, a nova criação faz-se diante dos nossos olhos.
Por isso, sem dúvida, uma imaginação nómada, que se ri das fronteiras, transvasa neste traço fértil, irreverente, num torrencial contido, disposto a não ceder a nenhuma crença ou postura de arte, ideologia ou religião. É uma imaginação altamente metafórica que nunca se replica. Convida-nos a entrar num universo em tudo oposto ao universo serial e monofórmico dos clones.
De certo modo, em A Noiva do Campo Mil, as esculturas (formando parte de um Bestiário Vegetal in progress), feitas num registo contra a escultura - ao privilegiar o suave, o levíssimo e a suspensão -, ao mesmo tempo que são autónomas prolongam a imprevisibilidade dos desenhos.
Podiam ser consideradas aceleradores das partículas mutantes, como introdutores de novos factores de incerteza no destino já de si indecifrável dos seres múltiplos, e também funcionam como bombas de água que transportam elementos nutritivos dos registos bidimensionais para os tridimensionais.
E vemos que, ao contrário do mundo funcional que é meramente coercivo e normativo, tanto os desenhos como as esculturas estão carregados de intenção. Essa intenção obstinada que pode levar a uma verdadeira tomada de poder, o poder pessoal de circular entre todo o tipo de realidades.

Miguel de Castro Henriques, prefácio do livro/catálogo "A Noiva do Campo Mil", 2005.

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